quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Um Canto de Liberdade

Por Luiz Carlos Prates

Duas dificuldades me tiravam do sério. A primeira era escolher a cadeira; a segunda, o livro. É que eu decidira ler debaixo de uma árvore. A boa leitura exige boa cadeira e boa cadeira pede um bom livro. De modo, que essa era a minha dificuldade.



Optei por uma velha cadeira de praia, dessas cadeirinhas de lona, de pouco conforto para os mais delicados. Acabei achando que essa era a cadeira mais indicada, gosto é gosto, bem sabemos todos.



Decidida a cadeira, faltava o livro. Que livro pegar? Tenho tantos e tantos livros ainda não lidos que a fartura tanto me causa dificuldades de escolha quanto sentimentos de culpa. Livros e leituras atrasadas deixam-me inquieto. Pensei, pensei e decidi. Fui “lá dentro” e trouxe o livro Segredos da Vida, de uma médica americana que durante muito tempo tratou de pessoas em estado terminal, até que ela mesma virou paciente terminal. Acabou escrevendo esse livro, que é uma preciosidade para que descubramos a vida antes de perdê-la...
Pronto, definida a cadeira, escolhido o livro, lá me fui, para baixo de uma árvore. Se alguém me perguntar que árvore era, fico devendo, não conheço árvores nem presto atenção a elas na definição de suas raízes.



Sentado, livro aberto nas mãos, primeiras linhas vencidas e...um barulho para tirar-me da concentração. Barulho? Barulho ou música? Música, sem dúvida, música. E da melhor, executada sem partituras nem instrumentos a exigir afinação, música pura, afinadíssima.



Sabes o que era e de onde vinha a música? Era um passarinho, dele vinha a música. Sem que eu precisasse pagar por qualquer “consumação”, sem que eu precisasse levantar ou baixar o som para adequá-lo a melhor audição, tudo na medida.



Um canoro pássaro do tamanho da palma da minha mão, não mais. Que gracinha. E veio cantar justamente sobre a minha cabeça, que corajoso, que companheiro. E que “intruso”. Fez-me parar com a leitura, fechar o livro e pensar sobre ele e na vida.



Como pode dentro de um bichinho tão pequeno haver tanta harmonia? De onde vem o som da música que ele reparte com todos sem estufar o peito de qualquer vaidade que se confunda com as frivolidades humanas? De onde ele veio? Para onde ele vai depois de me fazer essa serenata matutina? Ah, faltou dizer que era manhã, ali pelas 10 horas.



O passarinho me fez dispensar a leitura dos sofrimentos das pessoas, objeto do livro Segredos da Vida, e dar-me a pensar sobre as belezas, belezas naturais, liberdade, e destino. Santo Deus, como me senti pequeno diante daquele passarinho. Seria por isso, por pequenez, que os seres humanos tiram a liberdade dos pássaros? Seria por inveja? Ou seria por vingança? Quem sabe por insensibilidade? Não me sobram dúvidas, é mesmo por falta absoluta de clareza da mente que muitos humanos tiram dos pássaros o que mais remotamente na história humana configurou nossa primeira e mais inesquecível frustração: não poder voar.



Nos jogos verbais dos processos psicanalíticos, quando se diz a palavra asa e se pede ao cliente que diga o que primeiro lhe vem à cabeça, a resposta infalível é voar. E quando se diz voar a primeira palavra que mais surge é liberdade.
Os pássaros foram dotados de asas para voar, foram premiados pela natureza e pela inspiração dos céus com o ilimitado dos horizontes, mas são, todavia e não raro, aprisionados cruelmente para que seus carcereiros possam gozar da música natural de que os pássaros são capazes, do mesmo modo como tiranos das mais severas ditaduras da história humana transformaram filósofos e pensadores em escravos. É a vingança dos insensíveis diante da incompreensão do sagrado direito à liberdade, que no caso dos pássaros se expressa pelo poder das asas.



O canto de passarinho, livre e pousado sobre um ramo de árvore é canto, é alegria de vida, é celebração de liberdade. Esse mesmo canto, quando encarcerado o pássaro, transforma-se em pungência e lamento, ainda que os sons sejam parecidos. Os insensíveis são incapazes de notar as diferenças nas notas da mesma música.



Que crueldade um passarinho preso nos limites brutais de uma gaiola sem que tenha violado qualquer lei da natureza, se que tenha dado ao ser humano qualquer razão para seu encarceramento. Que triste um bicho desses numa gaiola de loja ou de apartamento, com pouca água, com água suja, morna, comendo farelos sem gosto inventado por seres humanos que não deviam ter nascido. E que triste um pai dar aos filhos essa lição de crueldade sob o manto falso do amor aos bichos. O verdadeiro amor abre portas, o verdadeiro amor dá liberdade, o verdadeiro amor ama sem posses. O verdadeiro amor não limita espaços, o verdadeiro amor deixa voar.



Não pude continuar a minha leitura, mas não me lamento disso. Um passarinho me veio cantar de graça, bem sobre a minha cabeça. Não precisei prendê-lo numa arapuca nem fazê-lo viver como meu escravo cantando para mim o que para ele são lamentos da prisão.



Amanhã vou voltar à minha árvore, já decidi pela cadeira e sei que ele voltará...Voltará cantando como cantam todos os pássaros em liberdade, um canto que não se confunde com a plagência da gaiola.

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